Eu era criança, terceiro de quatro filhos de uma família de classe média do interior do Rio Grande do Sul. Minha mãe, como se dizia na época, era “do lar”. Meu pai, advogado, político e professor. A infância foi consumida entre o colégio católico, brincar e ir para a praia no verão. De quando em vez, ficar na casa da minha avó materna. A autoridade dos meus pais era inquestionável, especialmente da minha mãe. Ambos pareciam sábios. Minha confiança era absoluta. Machucados, fome, compra de roupas, autorizações em geral? Favor dirigir-se ao balcão materno. Dúvidas de livros, pedidos de verba suplementar, questões vernáculas? O guichê era o paterno. O mundo era sólido, o amor parecia perfeito e tudo transcorria entre natais abundantes, ninhos de Páscoa, churrascos e a voz grave da babá com o original nome (verdade!) de... Zelosa. Fazia redações em maio e agosto sobre a perfeição dos pais.
Eu cresci ou mudaram os natais? Na adolescência, passei a me irritar com meu pai. “Você é filho do dr. Karnal?”, a frase obrigatória me perturbava na cidade pequena. Meu ser, em ebulição hormonal e descontrole, via defeitos enormes no homem que me gerara. Entre outros, graves, crime de lesa-pátria, erros hediondos: ele sempre fazia a sesta depois do almoço! Em outra ocasião, faltou a um recital de piano meu. Já imaginaram a gravidade disso? Deveria perder o então existente princípio do pátrio poder! Minha mãe me parecia invasiva e autoritária, sempre querendo saber de tudo. A comida e o dinheiro continuavam interessantes, mas os geradores dos bens não! Eu achava que os pais dos meus colegas de escola, em geral, pareciam melhores do que os meus.
Cresci. Entre a admiração cega da infância e a distância irrefletida da adolescência, surgiu a terceira geração de pais na minha consciência: seres humanos amorosos e com defeitos, a quem eu devia quase tudo. Morando fora, tinha saudade aguda de casa e da família. Um dia, olhando um velho relógio de pulso que meu pai me dera e que era dele havia décadas, chorei por muito tempo. Estudava longe e o frio do mundo aquecia a memória do lar.
Houve um quarto parto de pais. Eles envelheceram e foram amparados e cuidados por todos nós. Achaques da idade, declínios de memória, médicos em profusão, manias geriátricas: os quatro filhos viraram pais dos pais.
Na velhice deles, inverteu-se o curso do rio. Agora a água do afeto era para os dois. Os natais? Os aclamados e aguardados natais familiares eram organizados por nós. O objeto da nossa natividade? Eles. A parte chata (louça, cardápio, músicas, decoração e pagamentos) era nossa. A parte lúdica era deles. A cada celebração, muitas alegrias e uma pergunta velada: estarão aqui no ano que vem? A vida foi se tornando frágil e a chama da vela da existência parecia bruxulear.
Um dia, houve uma visita a um oncologista que determinou uma angustiante notícia e um horizonte de brevidade para meu pai. Foi devastador. Chegava o temido fim. Sete anos depois e infindáveis internações, apagou-se a vida da minha mãe.
Sem eles, emergiu a última memória e o derradeiro parto. Saudade forte, choros de quando em vez, humor nas lembranças e repetição de frases e hábitos. As lembranças tornaram-se cálidas. Toda vez que uso uma abotoadura do meu pai ou quando vejo uma foto da minha mãe, voltam-me universos dos muitos progenitores que eu tive, reunidos sob dois nomes apenas.
Os natais continuaram, as páscoas seguiram, os netos cresceram... Pais perfeitos, imperfeitos, humanos, canonizados, relembrados, reais, reinventados a cada nova curva da nossa biografia. Estão lá, sempre os mesmos e sempre diversos. As figuras variam de acordo com o grau dos óculos que utilizo e da minha vida que avança.
Como você, querida leitora, como você, estimado leitor, tive muitos pais e apenas dois. O recorte do amor é atemporal, a percepção dele depende do tempo.
Vi meus pais sob a luz forte do verão e no declínio do inverno. Penso neles com imenso amor no meu outono. Eram pais para todas as estações. Eles eram, afinal, o tronco que perde folhas, mas está sempre lá.
Várias vezes vi jovens fazendo o mesmo que eu fiz. Críticos dos pais, irritados, sentindo-se infelizes com idiossincrasias maternas ou paternas. Entendo perfeitamente. Aceito, igualmente, que a mangueira dará manga e que nunca estarei longe do pé ao cair da copa original. Sou o fruto de árvores genéticas e psíquicas. Tenho história, tenho biografia, tenho DNA e estrutura deles. E quando alguém rola, rola e rola para longe, irritado com as árvores geradoras, eu sorrio: vá florescer em outro sítio, querida manga rebelde. Faça tudo diferente e... gere mangas originais, só suas, absolutamente suas e... idênticas às frutas de onde você fugiu. Não é uma maldição. É um legado! A herança do amor. Apague tudo, delete o máximo possível, rasgue e queime lembranças: um sorriso afetivo de um casal continuará lá... Choro hoje, atravessado pela saudade e pela vontade enorme de um momento a mais com eles. Ah, se eu soubesse amar do jeito que fui amado! Boa semana para pais e filhos. Esta história nunca poderá ser reparada.
Texto do Leandro Karnal, publicado no “Estadão”, edição de 14/03/21.