Seu Fernando tem 86 anos. Há oito mora no asilo. Morou os últimos trinta
anos de sua vida numa casa simples de dois cômodos que vendeu, com os poucos
móveis que possuía quando ficou viúvo. Dividiu o valor para ele e um casal de
filhos. Com a parte que lhe coube, calculou que aplicado na poupança, poderia
viver confortavelmente dos rendimentos que somados à sua aposentadoria do INSS,
conquistada por tempo de serviço como operário de uma indústria metalúrgica,
poderia viver tranquilo financeiramente. Apesar de não sofrer de nenhum
problema grave de saúde, pensava em reservar tal grana para tratar dela, pois tinha consciência de que naquela idade
os gastos na farmácias ou hospitais, tendem a ser maior que nos
supermercados ou restaurantes. O corpo já não se move com o mesmo vigor de
outrora por isso, anda apoiado numa bengala de madeira, com o castão
em marfinite representando a cabeça de um leão, símbolo do seu time do
coração, o Sport Clube do Recife, presente recebido de seu filho a quem na infância
o incentivou a ser também um rubro-negro.
A rotina no asilo, as vezes o deixa inquieto, mal-humorado e irritadiço. Talvez rabugice, ranzinzice
da idade. Não bastasse as frequentes
noticias da morte desse ou daquele amigo ou parente, vive resmungando que não suporta
mais ouvir histórias, não solicitadas, recheadas de façanhas, ou exemplo de
virilidade dos seus colegas de asilo, da época em que eram jovens. Histórias contadas
depois do jantar, enquanto aguardam, numa sala de estar, que o televisor seja ligado para assistirem à
novela das oito. Os que não veem novela,
se recolhem aos quartos ou vão
para a varanda jogar conversa fora. Gosta de futebol, mas quase não
assiste, haja vista que no horário de transmissão pela televisão ele já está no
terceiro sono.
Durante meus expedientes como voluntário, nesse estabelecimento, me acostumei a
conversar com seu Fernando. Também me acostumei a ouvir pelos corredores, nos
dias de visitas, as mais variadas desculpas ou justificativas acerca das razões
para as estadas dos idosos naquela instituição:
“meu irmão não quer saber dele e
deixou pra mim (sic) cuidar dele sozinho e como eu não tenho tempo...”
; “
Trabalho o dia todo e mal dou conta de cuidar do meu marido e dos meus dois
filhos...”. Também ouvi certa vez (enquanto
aguardava na recepção a autorização para acesso às dependências do asilo) uma
garota, vestida num short minúsculo e com uma blusa que aparentava ter sido
decotada para ressaltar uma tatuagem abstrata e com um “piercing” no nariz dizer que : “ Se a filha não quer saber dele, eu como neta não vou assumir esse
encargo”. Ela conversava com outra visitante, a quem demonstrava alguma
intimidade, ao mesmo tempo em que ajeitava
uma sacola de supermercado com alguns produtos de higiene e limpeza que
estava levando para o avô. Triste ouvir isso! Entendo como uma forma de
violência. Li outro dia, em algum lugar que
“Aquele que despreza seus
velhos, é como um galho que deixa o
tronco que os sustenta tombar sem apoio e que a ingratidão para com aqueles que
nos sustentaram na infância é semente de amargura lançada no solo, para
colheita futura”. Pura verdade. Abandonar alguém que ao longo de nossa infância e adolescência,
dedicou parte de sua vida, para cuidar dos nossos ferimentos físicos e emocionais, é uma forma de
eutanásia. Talvez a mais dolorosa. A eutanásia sentimental.
Nunca procurei saber as razões
de seu Fernando ter ido parar ali. O que
me falou certa vez foi que fazia bastante tempo que não recebia visitas e nem
noticias de seus filhos. A ultima
noticia que teve do Fernandinho Jr, foi quando recebeu o convite do casamento
do neto (filho dele). Faz uns cinco anos. Mandaram entregar no asilo. “ Teria ficado muito feliz se pudesse ter
comparecido mas eu não possuia condições
de ir sozinho. Era preciso alguém vir me buscar”. Confessou com certa
melancolia. Até alimentou esperança que isso pudesse acontecer. Pediu para comprar
uma calça e sapatos novos. Ninguém apareceu. Da filha, só sabe que está no
terceiro casamento. “Tem gênio forte.
Sempre foi muito autoritária e rebelde.
O primeiro marido não a aguentou”.
Cochicou para mim, colocando a mão direita na lateral da boca, em tom de
confidência. Do segundo não sabe porque ela se separou. “Deve ter sido pelo mesmo motivo”, me atrevi a dar esse pitaco. Essa
foi a ultima noticia que teve dela, através
do neto de um antigo vizinho, que trabalha como técnico de refrigeração e o reconheceu
quando certo dia, esteve no asilo para consertar uma geladeira.
Domingo passado foi dia dos pais, independente de ser uma data
comemorativa, aos domingos o asilo
recebe um numero significativo de familiares. Eu estava de folga mas o vínculo
afetivo que estava se formando entre mim e o seu Fernando, me obrigou a ir
visita-lo até porque eu sabia que ele se arrumava todos os domingos mesmo ciente de que não
receberia visitas, embora nunca perdeu a esperança de que um dia isso pudesse
acontecer. Talvez para ele é uma forma de mitigar seu sofrimento ou mascarar sua
solidão.
Encontro-o no seu quarto, felicito-o pela data e lhe dou um caloroso
abraço, acompanhado de um singelo presente que fiquei sabendo que ele há muito
vinha desejando. Um álbum para acondicionar fotografias. Ele precisava
organizar algumas fotos. Preservar a memória dos tempos em que era “gente” se
maldizia. Retira do guarda roupa, uma surrada pasta tipo 007 onde guarda seus documentos
e fotos antigas. Revisita o passado olhando as fotos, a maioria em preto e
branco, ao lado da esposa, com o filho, outra com a turma da empresa
comemorando um dos seus aniversários. Tento poupa-lo da angustia e do vazio que
aos poucos vai corroendo os restos dos seus dias, mudando de assuntos, mas ele
insiste em revisitar o passado. Procura
uma foto da filha para me mostrar mas não encontra. Com um misto de satisfação
e curiosidade, abre um envelope encardido pelo tempo e encontra um cartão,
desses que são feitos artesanalmente na escola (quando ela tinha 7 anos) para
ser entregue aos pais, no dia dos pais daquele ano. No cartão um pequeno coração traçado com linhas trêmulas,
abrigava letras desenhadas com esmero e uma declaração: “Te amo papai”.
Olho para seu Fernando e vejo que naquele
corpo frágil, envelhecido, cheio
de rugas e maltratado pelo tempo, bate um coração, que ainda ama, sofre e espera,
apesar de ferido mortalmente pela
solidão dos seus dias, pela indiferença dos familiares, e principalmente, pela
ingratidão dos seus filhos.
Despeço-me dele com caloroso
aperto de mão enquanto enxergo no seu semblante um olhar de melancolia. Tento disfarçar
minha expressão emotiva ou evitar encher os meus olhos de lágrimas. Não
consigo. E saio dali com a certeza de
que como filho eu jamais escreveria uma história com enredo semelhante, mas como pai, a gente nunca tem a certeza e nem a segurança disso.
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