Dia desses, Paulo precisava ir até a clínica onde havia marcado uma consulta para iniciar seu check-up periódico. Era um dia carregado de afazeres. Ele já havia feito vários adiamentos e não queria protelar mais uma vez. Precisava cuidar da saúde. O horário agendado coincidia com o horário em que o trânsito provoca na cidade uma efervescência louca. O chamado “horário de pico”. Um fato que aflora a impaciência e afeta a sua baixa resistência ao caos provocado pela desordem e falta de organização do trânsito, que é cada vez mais formado por motoristas deseducados, adeptos da “Lei de Gérson”, transgressores deliberados e, por vezes, ignorantes das regras que o regem. Resolveu deixar o carro em casa e ir a pé.
Além de uma decisão fisicamente saudável, era também ecológica e financeira, haja vista que evitava despejar uma parcela, ainda que ínfima, de gás carbônico na natureza, economizava combustível (e, consequentemente, alguns trocados). Sem citar que o pedestrianismo não envolvia nenhuma dificuldade técnica, sendo uma atividade simultaneamente relaxante e agradável, e “muito recomendada para quem, como ele, já estava no segundo degrau da fase do ‘enta’”. Foi como disseram seus colegas de trabalho, quando comentou com eles tal decisão.
O trecho a percorrer era em torno de três quilômetros, e, vendo as pessoas encapsuladas num veículo, sem esquecer que ele diariamente fazia parte desse contingente, raciocinou que elas faziam este percurso muito mais por comodismo (ou inconsciência sedentária) que por necessidade, fato que os privavam de algumas descobertas, curiosidades e certos deslumbramentos paisagísticos, só possíveis na caminhada, como ele vinha constatando.
Logo no primeiro quarteirão, cometeu um abuso: acelerou o passo para economizar alguns segundos na travessia de uma rua, num cruzamento cujo semáforo estava na iminência de fechar, mas não deu tempo. A situação exigia uma demanda física que o seu corpo não conseguia atender. Quase foi atropelado. Chegou ao destino. Conferiu o relógio e calculou o tempo da caminhada: em torno de 25 minutos. Feito os procedimentos de identificação, como é de praxe nos consultórios, sentou-se e começou a folhear algumas dessas revistas que os consultórios colocam para entreter os pacientes e lhes aliviar a espera, até serem chamados para o atendimento.
A pressão arterial não estava normal, e a frequência cardíaca estava fora dos parâmetros previstos para a sua faixa etária. Ficou preocupado. Não imaginou que estaria muito discrepante das medições feitas nas consultas anteriores.
Conversou com o médico sobre a sua façanha de, naquele dia, ter trocado os pedais do carro por um par de tênis e do percurso feito a pé, e o médico aproveitou para ressaltar e apregoar os inúmeros benefícios para a saúde que tal troca proporciona: melhoria da circulação da pressão sanguínea, da frequência cardíaca, além de elevar a autoestima e evitar a depressão (já que a atividade aumenta a produção de serotonina e traz a sensação de bem estar). Dito isso, desafiou-o a fazer uma caminhada de vinte minutos, pelos próximos 30 dias e por, no mínimo, 3 vezes por semana. Fazendo isso, ele passaria da categoria de “inativo” para “moderadamente inativo”. Condição que diminui em torno de 16% a 30% o risco de mortes prematuras. Dados estatisticamente comprovados por pesquisas realizadas por entidades especializadas. Saiu do consultório com o firme propósito de mudar. Em casa, marcou no calendário algumas metas a alcançar, inclusive, a data de retorno ao consultório.
Infelizmente, Paulo não voltou ao consultório na data marcada para prestar contas do seu compromisso com o seu cardiologista. As atribuições e atribulações profissionais o levaram de volta ao universo do sedentarismo. Sem controle de horário para as refeições, sem uma alimentação saudável, sem disciplina no cuidado com sua saúde e sem dar atenção às vozes do seu corpo, sofreu um infarto fulminante na empresa durante uma reunião de negócios.
Nas palavras do seu médico, Paulo “passou a engrossar as estatísticas das mortes por sedentarismo, que, no Brasil, perdem apenas para diabetes, tabagismo e hipertensão, fatores de riscos aos quais também estava exposto”.
Quinze dias depois, a empresa apresentou o profissional que iria preencher sua vaga. Rei Morto, Rei Posto. Esse é o mundo corporativo. Dentre os pertences encontrados em uma das gavetas de sua mesa, um livro de autoajuda, presente da esposa, por ocasião do seu último aniversário, com uma dedicatória em forma de desabafo: “Nenhuma flor sobrevive se não souber cultivála”, e, em sequência, uma recomendação e um alerta: “... que você não perca a vida tentando ganhá-la”. Pareceu premonição. Numa outra gaveta, um porta-retratos com fotos do filho caçula, a quem prometera levar à Disney quando completasse dez anos (e não cumpriu). Numa pequena estante ao lado, um troféu conquistado pela excelência no desempenho da função, certamente trocado por sua saúde, por momentos significantes de sua vida pessoal, pela sua felicidade e por algum dinheiro na poupança, que não deu tempo de gastar.
Na missa de 30º dia, reencontrei alguns dos amigos em comum, e um deles lembrou uma frase citada por Paulo num evento de premiação, ao receber um certificado de “honra ao mérito” pelo cumprimento das metas do trimestre anterior: “Tem coisas na vida que não têm preço...”, mas ele esqueceu que a frase estava ncompleta: “... mas muitas têm troco”, e consequências fatais!
Do Livro: O Cio do Ócio - Contos & Crônicas / Adenildo Aquino - Pág. 57 - São Paulo, Editora Biblioteca 24Horas, 1ª Edição – setembro de 2019
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