Vinho e
Café
Nós sempre nos chamamos
pelos nomes, Maria e José, assim
como poderíamos ser João ou Roberto,
Helena ou Lucila. Gosto deste nome Lucila. Mas somos Maria e José.
Houve tempo em que nos tratávamos
carinhosamente: Ninha e Zezé. Mas essa
época está longe. Já não há jabuticabeiras nem quintal, ou alameda de
jasmins. A cidade é grande, Maria já
não veste mais vestidos de organdi
branco e eu já não tenho o meu terno
azul-marinho, de calças curtas.
Sessenta e sessenta e cinco anos. Irmãos.
Maria foi bonita. Era alta,
olhos grandes e escuros, pele muito
clara. Tinha um ar, um sorriso distante. Sabia disso e tirava partido. Hoje
quando a olho me dá pena. Seus olhos
diminuíram, a pele está manchada, os ombros
caídos.
Quanto a mim, não sei. Ela deve sentir a
mesma coisa. Procurar o rapaz que fui e já não sou.
Somos só nós dois neste apartamento. Há a empregada que vem duas vezes por semana e o cachorro de Maria. Vive
enroscado em seus pés, a lamber-lhe os chinelos e a olhá-la com olhos melosos.
Eu não gosto de bichos. Sinto um certo constrangimento, é o mesmo com crianças.
Ela foi professora a vida toda. Eu
advoguei enquanto pude. As tristezas da profissão e uma certa descrença da vida
me fizeram parar. Hoje não fazemos
nada. Ela tem o seu crochê, suas novelas, seu cachorro. Eu leio de vez em quando, tenho o meu
cachimbo, meu vinho e minhas voltas na
praça que fica bem aqui em frente.
As vezes me pergunto com
teriam sido nossas vidas se nos houvéssemos casado. Nunca encontro resposta.
Lembro-me de um namorado de Maria. Ela ia pelos vinte anos. Ele era bancário,
um moço alegre e bem disposto. Um dia acabou, Maria caiu numa tristeza profunda
e quieta. Tempos depois lhe perguntei porquê e ela me disse que não se amavam,
que ele era vulgar e frívolo. Nunca soube o que ela entendia por vulgar e
frívolo, mas em seus olhos havia ainda alguma mágoa, um pouco de pássaro.
Eu gostei de uma mulher. Já
homem maduro me vi apaixonado, mas Maria venceu. Quando lhe apresentei a moça,
ela sorriu, foi delicada, conversou. No dia seguinte me fez a pregunta:
- Você vai casar?
- Não
sei Maria.
- Não gostei dela.
Nunca mais falamos a respeito. Era uma vida inteira com Maria, nada
podia fazer. Não me arrependo. Temos alguns amigos, mas
são poucos. A vizinha do apartamento da frente, viúva de um médico, de quem
Maria ouve as queixas. Um antigo colega de faculdade que traz flores todas as
semanas, joga conosco e, mais que isso,
ressona na cadeira de balanço que foi de papai. O padre da igreja do bairro, homem cheio de
macieza, dengoso, que escuta os pecados de Maria.
Aos domingos ela faz frango ao molho pardo
e ovos queimados. Nunca deixou de perguntar se estava bom, como da primeira
vez. Sabe que gosto, e tem um prazer tão grande em me contentar que não posso
deixar de achar graça. Fica brava, e Maria brava é engraçada. Franze as
sobrancelhas, levanta os cantos da boca. Enquanto não lhe dou um beijo na testa
não volta ao normal.
Nossas noites são calmas e quietas. O
cachimbo não me permite falar e Maria fica a
contar os pontos na agulha e beber as palavras de amor que ouve na
televisão, o que por certo nunca ouviu ela mesma.
Depois não há nada a dizer.
-
José, ponha a água para ferver. Vou fazer o café.
São dez horas e essa hora é sagrada. Ela
arrasta os chinelos, arruma o xale nas costas e vai para a cozinha acompanhada
pelo cachorro. Escalda o bule, as xícaras.
Falado o tempo do padre, diz boa
noite e fica horas no terço antes de
apagar a luz do quarto.
De uns tempo para cá Maria andou esquisita. Me chamando de Zezé,
falando como criança, meio esquecida. Um dia estranhei isso tudo e ela respondeu
que era velhice, miolo mole. Fiquei preocupado, além
disso ela sentia umas dores no peito. Me alarmei. Levei-a ao médico e a
resposta veio franca e dura:
- Esclerose, coração.
Agora Maria morreu. A
cadeira em que costumava sentar está vaga, seu crochê inacabado, o cachorro
lambe os meus sapatos. Eu contrafeito,
passo a mão na sua cabeça.
São dez horas, levanto-me e ponho a água no
fogo. Me atrapalho ao escaldar o bule. Estou velho e cansado. Ia me esquecendo, é só uma xícara.