terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Vinho e Café

                                            Vinho e Café
                                               (Anaelena P. Lima )




           Nós sempre nos chamamos pelos nomes, Maria e José,  assim como  poderíamos ser João ou Roberto, Helena ou Lucila. Gosto deste nome Lucila. Mas somos Maria e José.
        Houve tempo em que nos tratávamos carinhosamente:  Ninha e Zezé. Mas essa época está longe. Já não há jabuticabeiras nem quintal, ou alameda de jasmins.  A cidade é grande, Maria já não veste mais vestidos de  organdi branco e eu  já não tenho o meu terno azul-marinho, de calças curtas.
          Sessenta e sessenta e cinco anos. Irmãos.
Maria foi bonita. Era alta, olhos grandes e escuros, pele muito clara. Tinha um ar, um sorriso distante. Sabia disso e tirava partido. Hoje quando a olho me   dá pena. Seus olhos diminuíram,   a pele está manchada, os ombros caídos.
      Quanto a mim, não sei. Ela deve sentir a mesma coisa. Procurar o rapaz que fui e já não sou.
    Somos só nós dois neste apartamento. Há a empregada que vem duas vezes por semana e o cachorro de Maria. Vive enroscado em seus pés, a lamber-lhe os chinelos e a olhá-la com olhos melosos. Eu não gosto de bichos. Sinto um certo constrangimento, é o mesmo com crianças.
       Ela foi professora a vida toda. Eu advoguei enquanto pude. As tristezas da profissão e uma certa descrença da vida me fizeram parar. Hoje não  fazemos nada. Ela tem o seu crochê, suas novelas, seu cachorro.  Eu leio de vez em quando, tenho o meu cachimbo, meu vinho e minhas voltas  na praça que fica bem aqui em frente. 
     As vezes me pergunto com teriam sido nossas vidas se nos houvéssemos casado. Nunca encontro resposta. Lembro-me de um namorado de Maria. Ela ia pelos vinte anos. Ele era bancário, um moço alegre e bem disposto. Um dia acabou, Maria caiu numa tristeza profunda e quieta. Tempos depois lhe perguntei porquê e ela me disse que não se amavam, que ele era vulgar e frívolo. Nunca soube o que ela entendia por vulgar e frívolo, mas em seus olhos havia ainda alguma mágoa, um pouco de pássaro.
Eu gostei de uma mulher. Já homem maduro me vi apaixonado, mas Maria venceu. Quando lhe apresentei a moça, ela sorriu, foi delicada, conversou. No dia seguinte  me fez a pregunta:
          -  Você vai casar?
          -  Não sei Maria.
          -  Não gostei dela.
     Nunca mais falamos a  respeito. Era uma vida inteira com Maria, nada podia fazer. Não me arrependo. Temos alguns amigos, mas são poucos. A vizinha do apartamento da frente, viúva de um médico, de quem Maria ouve as queixas. Um antigo colega de faculdade que traz flores todas as semanas, joga conosco e, mais que isso,  ressona na cadeira de balanço que foi de papai. O padre da igreja do bairro, homem cheio de macieza, dengoso, que escuta os pecados de Maria.
     Aos domingos ela faz frango ao molho pardo e ovos queimados. Nunca deixou de perguntar se estava bom, como da primeira vez. Sabe que gosto, e tem um prazer tão grande em me contentar que não posso deixar de achar graça. Fica brava, e Maria brava é engraçada. Franze as sobrancelhas, levanta os cantos da boca. Enquanto não lhe dou um beijo na testa não volta ao normal.
     Nossas noites são calmas e quietas. O cachimbo não me permite falar e Maria fica a  contar os pontos na agulha e beber as palavras de amor que ouve na televisão, o que por certo nunca ouviu ela mesma.
Depois não há nada a dizer.
           -  José, ponha a água para ferver. Vou fazer o café.
      São dez horas e essa hora é sagrada. Ela arrasta os chinelos, arruma o xale nas costas e vai para a cozinha acompanhada pelo cachorro.   Escalda o bule, as xícaras. Falado o tempo do padre, diz  boa noite  e fica horas no terço antes de apagar a luz do quarto.
      De uns tempo para cá  Maria andou esquisita. Me chamando de Zezé, falando como criança, meio esquecida. Um dia estranhei isso tudo e ela respondeu que era velhice, miolo mole. Fiquei preocupado, além disso ela sentia umas dores no peito. Me alarmei. Levei-a ao médico e a resposta veio franca e dura:
           - Esclerose, coração.
         Agora Maria morreu. A cadeira em que costumava sentar está vaga, seu crochê inacabado, o cachorro lambe os meus sapatos. Eu  contrafeito, passo a mão na sua cabeça.
         São dez horas, levanto-me e ponho a água no fogo. Me atrapalho ao escaldar o bule. Estou velho e cansado. Ia me esquecendo, é só uma xícara.




Nenhum comentário:

Postar um comentário